“(…) A verdade é que privamo-nos a nós próprios do tempo necessário para colher o sabor, o silêncio ou as cintilações que temperam a vida. No atropelo ofegante a que nos entregamos há um crescente alheamento de nós próprios. Não lhe damos o estatuto de patologia, mas esta desertificação da vida interior disfarçada de eficácia o que é senão isso? As nossas sociedades medem, infelizmente, o seu progresso esquecendo, quando não obliterando, domínios da vida humana que não são mensuráveis e que têm a ver com a interioridade, a criação, o dom, a alegria, o sentido. Héritier escreve: “Há uma leveza, uma graça singular no puro e simples facto de existir, para lá de todos os compromissos profissionais, dos sentimentos intensos, das lutas políticas e humanas: é disto e de nada mais que vou agora procurar falar. Desse minúsculo não sei quê a que chamamos o sal da vida.” E elenca, então, por um processo de associação espontânea, aquilo que nós não vemos ou não chegamos a valorizar devidamente: percepções, pequenos prazeres, detalhes dolorosos ou alegres, momentos de humor, curiosidades, lugares, flagrantes quotidianos. Deixo-vos com alguns exemplos: assobiar com um fio de erva na boca; limpar o prato com um bocado de pão; assistir a uma cavalgada num western; saltar à corda que duas amigas fazem girar sempre mais rapidamente; sentar-se com as próprias forças na cama de um hospital; recordar-se já sem vergonha das imbecilidades que fizemos lá atrás; cair do pódio à frente de 100 pessoas; dançar maravilhosamente a valsa, mas também a rumba, o tango e o rock ́n roll; passar uma noite em branco para ler um romance; escrever à mão; perder tempo a formular melhor uma ideia; improvisar durante a semana um jantar de domingo; perder-se a contemplar um formigueiro que ferve de actividade; não fazer de conta que não se vê o sofrimento alheio; não conseguir recordar-se da sequência de uma anedota, apesar de todo o esforço, preparar uma mousse de chocolate seguindo a receita (cheia de manteiga) herdada da avó; respirar devagar e de olhos fechados num prado; amar as palavras degustando a sua sonoridade; reencontrar no armário o calçado de verão, quando ainda é inverno; pensar com prazer nos encontros que nos mudaram a vida; ser feliz quando os outros o são.”
José Tolentino Mendonça